Charles Baudelaire (1821-1867) |
"«De onde vem, perguntava, a tristeza que mina // O meu ser, como o mar invadindo os rochedos?» // Quando no coração se fez uma vindima // viver torna-se um mal. Não é nenhum segredo."
C. Baudelaire, in: "As Flores do Mal"
Afligimo-nos com a falta de esperança, com a redução das perspectivas, com a rotina que nos asfixia...com o amor que tarda em aparecer. Afligimo-nos e bradamos ao mundo e a nós próprios: "Quero mudar!".
Expressa a vontade, resta-nos obter livre acesso ao verbo: mudar. Apressamo-nos a entrar num corredor ladeado de portas fechadas e, numa voragem cega, abrimo-las uma à uma. A este ritmo, desenrolam-se as paisagens : desde paraísos com bichinhos fofos e Apolos musculados, aos infernos dantescos como aquele dos corpos humanos paralisados no gelo, as cabeças à superfície em gritos que ninguém ouve. Fartos do corredor portas, damos por finda a nossa demanda - caímos em nós ao perceber que nenhuma daquelas paisagens nos remete para um lugar especialmente nosso, neste mundo superlotado de vontades. Abertas as portas, o que vemos são quadros que parecem ter sido expostos por um louco. Paisagens de um imaginário colectivo e complexo, ilusões de uma realidade a que todas as formigas almejam. A realidade ideal. A Utopia Individual.
Sofremos com a discórdia entre querer e poder, muito embora ambos os verbos se interliguem naquele provérbio gravado para agradar aos parvos. Não, querer não é, necessariamente, poder. Querer é apenas isso: ter vontade de. Neste caso, de ser outra coisa, outro corpo, outra mente, um novíssimo ente, pois de nós próprios estamos fartos. Sofremos do Mal de Vivre, como lhe chamou o poeta Charles Baudelaire a essa estirpe da melancolia: o cansaço de sermos nós e sempre nós.
Solução #1: inscrevemo-nos no ginásio. Três, quatro, cinco vezes por semana, submetemos o corpo aos mais variados (e brutais) exercícios, à espera que os níveis da vontade diminuiam a cada flexão, alongamento, corrida suada, sem qualquer meta à vista, numa passadeira mecânica. Eis que chega a noite, o corpo exausto clama por paz. Mas aquela voz nunca se cansa: tens que mudar formiga, podes mudar, formiga, és dona da tua vida, formiga, tens o controlo do teu destino, formiga. Tens que, tens que, tens que...o super-juíz no interior da nossa mente vem trair todo o esforço do dia, inibindo-nos de dormir. Enfim, Encantamento errado.
Solução #2: marcar consulta no psicanalista. Em duas ou três sessões ficamos elucidados: aquele trambolhão no parque infantil traumatizou-nos para sempre e por isso temos medo de mudar de baloiço. E agora, doutor? Agora, continuamos!, responde. Temos de ir mais fundo, dissecar os episódios da sua infância, verá como tudo fará sentido. Após meses em sessões no divã, o Mal de Vivre, esse bicho, vai ganhando volume à nossa revelia, nossa e do médico. Pois não nos focámos em domá-lo. Apenas nos focámos em compreendê-lo. E certos bichos não se dão, de todo, à observação. Troçam das nossas introspecções.
Solução #3: fazer de conta que tal bicho, simplesmente, não existe. A pior decisão possível. Para se fazer recordar 24 horas sobre 24, o Mal de Vivre abraça-nos pelas costas, qual súcubo medieval. Com esse peso extra, ninguém consegue mudar. Ninguém. Pois esta besta é um anti-verbo. O oposto da acção. Submete-nos à gravidade terrestre até à rendição total. Deixamos de andar, resta-nos gatinhar por este mundo de provas e expiações.
Chega o momento fatal: a resignação. Não vou mudar, porque não posso mudar. Porque não me deixam mudar. Com o comando da TV na mão, ordenamos à box que grave todas as temporadas das nossas séries favoritas. E ali nos abandonamos, em contemplação dos sonhos de grandeza dos outros. Com o Mal de Vivre confortavelmente enroscado no nosso pescoço.
Vem um dia e as estrelas de repente se alinham, os planetas conversam harmoniosamente no espaço, Júpiter faz uma linda coreografia com Mercúrio e como o que está em cima é igual o que está em baixo, em nossa palhota toca o telefone. A notícia é boa - mais do que boa, é o prenúncio de um virar definitivo desta página amarga. Sei do que estou a falar, amigas formigas. Também eu, a vossa Encantadora, já se fartou de abrir portas enigmáticas, deixar o coiro no ginásio e ganhar ódio à infância. E ouviu o telefone tocar com a notícia de que a sua Vontade de Mudar ganhou o grande prémio: a ligação que faltava ao verbo Agir. Sem esforço, privação ou troca por sofrimento.
Graças à boa notícia, mui subtilmente, o Mal de Vivre descola-se das nossas costas para deslizar em direcção a um buraco qualquer.
Tanto barulho por nada, diria Shakespeare.
Tanto barulho, amigas formigas, quando as grandes mudanças ocorrem nos Encantamentos do palco estelar, entre coreografias e diálogos antigos e secretos, digo-vos eu.
Assim se aprende a humildade.