domingo, 23 de agosto de 2015

A minha vida com Joe


Cesare "Joe" Colombo (1931-1971)

Posso afirmá-lo: eu e Joe Colombo sempre vivemos sob o mesmo tecto. 


O Móvel de Arrumação Portátil (Portable Storage System), da autoria do designer italiano Joe Colombo, não só nos acompanhava ao longo das constantes mudanças de casa, como se adaptava  a quaisquer imposições espaciais. Lembro-me do "Joe-Garrafeira", do "Joe-Atelier", do "Joe-aparador", entre outras variações do mesmo móvel branco, de curvas elegantes e puras.

Sempre soube tratar-se de um objecto de design (nunca de uma réplica industrial barata, à venda num retalhista e pronto-a-montar), mas só lhe reconheci o lugar no pódio (entre outros objectos similares), quando me deparei com o seu irmão mais velho no Museu do Design e da Moda (MUDE), em Lisboa e, anos  mais tarde, quando conheci uma sua prima no MoMA, em Nova Iorque, a famosa Minikitchen.

Portable storage system, 1969
Joe Colombo foi um designer genial que marcou a década de 1960 ao concentrar múltiplos aspectos da vida doméstica em objectos inovadores e portadores de uma estética futurista. Aliados a uma fácil (e elegante) deslocação, assente no sistema universal das quatro rodas. Se a finalidade do design industrial é aliar a forma à função, então Joe Colombo foi o rei do mobiliário funcional. Naquele tempo, em que tantas formigas se acostumavam a viver em propriedades verticais e, consequentemente, em espaços urbanos mais reduzidos, uma cozinha portátil e de uma qualidade estética à prova de bala, mais que um móvel, era um objecto de desejo.

Minikitchen, 1963
Desconheço o custo real e actualizado dos móveis portáteis de Joe Colombo, mas o nosso apareceu lá em casa, julgo eu, quando eu começava a gatinhar. É um animal vistoso que se exibe às visitas, presença forte com direito a respirar no seu próprio espaço. Um bicho que fazemos desfilar de uma ponta à outra da sala. Repito: um objecto de desejo.

Como não se abandonam, nem animais, nem objectos de estimação, trouxe-o comigo para o meu novo esconderijo. Respeito-lhe os espaços e gavetas, tentando não sobrecarregá-lo de mais com as minhas ervas, flores e calhamaços de Encantamentos. sua presença sofisticada reacende-me o desejo por um mundo melhor, menos arbitrário no consumo de coisas sem valor. 
Eis, o meu Joe Colombo:



Saiba mais em: http://design.designmuseum.org/design/joe-colombo







quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Eu, Sócrates, Freud e Bridget Jones


«Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o Universo e os deuses» - Sócrates (470-399 a.C.)

"Livros de Auto-ajuda". Quem mais os lê, diz-se, são as meninas e senhoras formigas . Quanto aos nossos meninos e homens, com a educação - ainda reminiscente - de que «os duros não dançam», a tal propósito temos o sarcástico "não li e não gostei", o arrogante "eu sei tudo o que aí está, não preciso de ler" e o pior deles, o homúnculo, o qual não lê "livros para gajas". 


Ora, caras amigas formigas, mau-grado escusar-me de dormir com tais super-machos, decido agora ser advogada do diabo e relembrar o filme "O Diário de Bridget Jones". Neste, a personagem teme um destino de solteira até um dia acabar, segundo ela própria, «encontrada morta, meio-comida por Lobos-de-Alsácia». 
Numa das cenas finais, Bridget Jones (Reneé Zellweger) , reúne todos os seus livros de Auto-ajuda e, em pijama, vai enfiá-los no contentor do lixo. Golpe de teatro: do fundo da noite, regressa o namorado Mark Darcy (Colin Firth) e ambos fazem as pazes. Acção-consequência? Será que as coisas boas acontecem, não porque dominamos a arte de moldar a realidade na sua forma mais feliz, mas pela simples magia da imprevisibilidade? A ser verdade, ainda menos dominamos os acontecimentos lendo um punhado de opúsculos que nos ensinam, passo a passo, capítulo a capítulo, como devemos proceder até a câmara fazer zoom no par de lábios que se beijam. The End.

Acredito no Amor. Aliás, é a única coisa em que acredito. Contudo, como já o escrevi, hoje serei advogada do diabo. À semelhança de Bridget Jones, gastei bom dinheiro nesses livros-felicidade-pronta-a-servir. Em quantidade suficiente para me confundir a cabeça, o coração e o estômago, ao ponto de agora os querer ver reciclados. Só não imito a cena do contentor porque certa formiga amiga, sabendo da minha intenção drástica de me desfazer de todos eles, implorou que lhos oferecesse. Uiiiii. Já estou a imaginar as vossas expressões, formiguinhas-leitoras: afinal, de que lado é que ela está? Do dos super-machos? Apresso-me a responder: do lado de quem se conforma com o facto, cientificamente comprovado, de que mais de 90% das nossas decisões são tomadas, não pela razão, não pela vontade, mas pelo nosso inconsciente. 


Ora, qualquer livro, por melhor que seja, por mais vendas que faça, por maior prestígio do seu autor, NÃO consegue fazer K.O. ao nosso inconsciente. É uma luta desigual. Trata-se do mesmo inconsciente que nos obriga a repetir padrões. O mesmo que, segundo Freud, empurra os homens para parceiras parecidas com as mãe e às mulheres para homens parecidos com o pai.  Édipo e Electra, grandes tragédias gregas no palco do nosso inconsciente, capazes de agregar-nos em carreiros de fêmeas e machos, de onde apenas se desviam aquelas formigas que buscam o auto-conhecimento. "Conhece-te a ti mesmo", teria proclamado o filósofo Sócrates. Formiga, sai fora carreiro, sussurro-te eu.

Os meus livros de Auto-ajuda, por mim destinados à mastigação do carro do lixo, terão como destino outro formigueiro. Afinal e em prol da sinceridade, acho que atirar livros em contentores deveria ser considerado crime público. Mas digo-lhes adeus. A esta altura da vida horroriza-me ser manipulada por tal bibliografia. Cansei-me de tentar controlar o incontrolável, entregando-me, com alegria, à beleza da imprevisibilidade. O que não me impede de ajudar o inconsciente a trabalhar a meu favor e não contra o meu direito à felicidade. No caso da felicidade amorosa, aconselho estes 3 Encantamentos ancestrais:

  1. Ouvir a intuição: vive com a mãe, um gato paralítico e sete aranhas amestradas. Não sou psiquiatra! 
  2. Usar da racionalidade inata: casado e amante à hora de almoço. Nunca!
  3. Apreender com os 5 sentidos a verdade dos factos: falas aos berros num restaurante? Come tu a minha sobremesa!

Ou todos estes Encantamentos juntos e mais alguns que se vão aprendendo. Soa a trabalho de uma vida. Pois é. Se calhar, várias.


segunda-feira, 17 de agosto de 2015

O novo planeta chamava-se Escola Primária


Na manhã daquele primeiro dia, fui acometida por um ataque de asma, seguido de vómitos e ranho, num choro tal que fez meu pai correr a enfiar-se no carro, mantendo-se ali bem seguro até passar a tempestade. Todos julgavam que ia ser fácil colocar-me a pasta vermelha nas costas. Não foi.

Pois, ali vinha a primeira classe (agora designada pelos burocratas do ME como 1.º ano do 1.º Ciclo). Grande foi o terror de quem estava prestes a pisar um novo planeta, apenas munida de um bibe e uma cesta de almoço. Perante a dimensão do caos causado por uma miúda de seis anos (bomba de asma, lenços, correrias à casa-de-banho) a minha mãe deitou mão a um último recurso. Um livro. Mais precisamente, o "Livro de leitura da 1ª Classe".  Colocou-me o livrinho cor-de-laranja nos joelhos: "Olha, os desenhos do teu livro de leitura são da avó Maria". Referia-se à pintora e desenhadora Maria Keil.

Tinha-a conhecido naquele mesmo Verão, na famosa Quinta em Sacavém, pontinho de Portugal Continental onde aconteceu o momento que iria transformar-me numa contadora de histórias: Maria Keil oferecera-me um teatrinho de fantoches de dedo, o "Teatro do Minimim", com personagens de sua autoria. Era (e ainda é!) o meu primeiro teatro a sério.

A evocação daquele episódio suavizou-me as emoções.

Apesar de adivinhar a impaciência do marido sentado ao volante, a minha mãe parou o tempo e deu-me a ver as ilustrações do livro de capa laranja, na qual meninos em fila entravam no novo planeta da escola primária. Ela folheou páginas e páginas de desenhos límpidos, de linha clara, simples na evocação de uma vida simples: havia uma senhora de avental a fazer gelados («Letra Gê: o gelado leva leite, gemas e açúcar»), meninos de braços levantados em direcção ao "A, E, I, O, U", como quem tenat alcançar pássaros em vôo.

A letra "I", associado ao desenho de uma igreja de bonecas. Lembrei-me, a avó Ester vai à igreja - lugar secreto para mim, filha de ateus. Mas aquele "I", o "I" de igreja, tão bem desenhado, como se fora manuscrito, tão acessível ao olhos, mostrou-me como alguns segredos, afinal, podiam ser revelados: bastava aprender a ler.


A leitura seria, então, a entrada para todos os lugares secretos dos "grandes". Mesmo os segredos que a minha avó ditava baixinho, na obscuridade de uma nave. O tempo voltou a andar. Engoli lágrimas, sequei o ranho, respirei fundo. De mão dada com a minha mãe, atravessei com passos valentes o nosso jardim, rumo à Lua.

"O Livro da Primeira Classe", da autoria de Maria Luísa Torre Pires, Francisca Laura Batista e Glória N. Gusmão Morais também conta com ilustrações do artista plástico Luís Filipe de Abreu a par das de Maria Keil. A 1.ª edição data de 1967, com a chancela da Editora Educação Nacional de Adolfo Machado. Nunca o vi reeditado. É uma pérola perdida.

Quanto ao "Teatro do Minimim", a partir dos meus sete anos entrou comigo em digressão. Era o ponto alto das festas de aniversário.  Havia somente uma condição para haver função nesse dia: ninguém, além de desta vossa Encantadora, podia tocar no teatro e respectivas figuras. Tal inflexibilidade deu bons frutos. Ei-lo, intacto, desde o século passado.
O Teatro do Minim, personagens e estrutura

O Polícia, a Rainha e o Diabo.

I  LOVE 560


quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Intrusos e Abusivos

Intruso: do dicionário, intrometido; aquele que se introduz sem direito


A minha casa é o meu castelo.  Se alguém pernoita no chão de palha da minha sala, até o convido para o pequeno-almoço, pois decerto é amigo. Mas quem se enfia por debaixo da porta, qual barata dissimulada pelo lusco-fusco, é decerto mal-vindo. Mas também acontece escancararmos a nossa casa, sem adivinhar que o nosso chão, uma vez pisado por certa figura, nunca mais será o mesmo. Refiro-me ao Intruso. Aquele ou aquela que só pede permissão para entrar uma vez transposta a soleira da nossa porta.

Antes de sequer pensarmos como tal aconteceu, abre-se-lhe um sorriso sedutor (acompanhado pelo tom invejoso na frase exclamativa "Bem gira, a tua casa!") e eis que nos informa:  olha, vou mudar de apartamento, mas só me dão a chave daqui a  dias... estou um bocadinho à rasca, sem lugar onde por as minhas coisas...Interrompes: alugas um contentor, queres o número da firma? E ele/ela, não, é só por uns dias e como soube por Fulano que tens arrecadação...posso, não posso, guardar umas coisinhas na tua arrecadação? Atarantada pelo pedido imprevisto, qual coelho paralisado pelos faróis de um carro, dizes sim, tudo bem. Temos de ser uns para os outros.

Muitos filmes de terror começam assim, com a cedência de uma vítima inocente ao agressor disfarçado.  Três, seis meses, um ano, a tua arrecadação, permanece cativa dos bens preciosos do teu Intruso, das "coisinhas" que afinal se revelam enormes volumes empilhados até ao tecto. Decides agir. Pegas no telefone e eis que escutas a seguinte mensagem: "O número que ligou não está atribuído". 

Passam-se mais alguns meses, Fulano diz que o viu passar ali, Sicrano jantou com ele acolá, mas a ti, Formiga ingénua, nem uma mensagem, nenhuma explicação, nenhuma desculpa, e quantos meios para o fazer! Por simples delicadeza. Gentileza. Educação. Tu, amiga Formiga, que foste educada para nunca deixar pegadas em casa alheia, vês-te aflita a esfregar a marca das patorras que teimam ferir para sempre o teu soalho sagrado. As pegadas do Intruso. Mais, do Intruso Abusivo, que apenas te vê como um depósito de acesso fácil, o descanso final para uma vida de que ele tanto se quis desfazer, sabem-se lá os motivos.

No meu caso, após três anos  esgotou-se-me a paciência. Dirigi-me à arrecadação e coloquei mãos à obra. Despejei os maus odores daquele Intruso na vala do lixo comum, ao mesmo tempo que me surpreendia com os conteúdos dos sacos, sacolas e caixas:   desde mercearias estragadas, a caixas de medicamentos vazias, escovas de dentes usadas e t-shirts esburacadas, jornais semi-desfeitos...no fim de contas, "bens" que se revelaram lixo, puro lixo. E como lixo, no lixo os depositei. Decidida e sem remorsos. Com a sensação maravilhosa de me ter livrado de alguém que, nunca dando de si, me mantinha refém da sua presença.

Caras formigas: uma das suas características mais comuns dos Intrusos e Abusivos é aparecem na vossa vida sem qualquer aviso prévio. Eles não pedem licença, eles não pedem desculpa, eles somente se aproveitam do outro para obterem privilégios. Ao primeiro sinal de manipulação psicológica (Bem gira, a tua casa, etc..), açoitem-lhes o pêlo sem misericórdia, como se faz às baratas e a semelhantes enganos de deus. Eis o Encantamento de hoje. Boa noite!


segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Tempo sem fronteiras

Entrava Agosto e meu avô declarava: "Primeiro dia de Agosto, primeiro dia de Inverno". Acreditem ou não, nesse mesmo dia acabava por chover. Isto é real.



Passado, Presente e Futuro.  Dizemos com naturalidade "O que passou, passou", "O futuro o dirá" e, claro, o famoso "Carpe Diem" do filme "O Clube dos Poetas Mortos". Enunciações que o vulgo repete a torto e a direito. Contudo, para certos cientistas, os da Teoria das Cordas, tudo acontece aqui e agora, em Universos Paralelos. Ilustre-se: enquanto escrevo este texto, um T-Rex atravessa o plano da janela à minha frente. Ops!

O Tempo, medido em horas, minutos e segundos, regra absolutamente acreditada a partir do século XVII com a invenção do relógio mecânico, é o tempo que se adapta à nossa necessidade de padrões confortáveis, num quotidiano falível e caótico. Balizas quantificáveis para o que se pode ou se deixa de fazer. Padrões de sono/vigília, padrões de lazer e trabalho, padrões de invocação e silêncio... milhões de rituais para tudo e mais alguma coisa. Acordar, escolher a roupa do dia, entrar no comboio, meter a chave à porta, adormecer...o início, o meio e o fim, repetidos qual melodia minimalista ao longo de uma vida. 
Queremos, desejamos, previsibilidade (para depois nos queixarmos dela!).

Regressemos aos teóricos dos multiversos. Coíbo-me de entrar em pormenores (acompanhados pelos incidentes grosseiros de quem coloca pé em seara alheia), mas tal ouvi dizer pelos ditos físicos: o que existe, apenas existe porque nós o observamos. Como no jogo infantil, em que a mãe cobre a cabeça com o lençol e o bebé diz, "Mamã não tá!", cremos somente naquilo que se revela pela nossa vontade. Vemos o que queremos ver.  Mas o T-Rex diante da minha janela coexiste com a batalha de Waterloo no espaço da sala e, imagine-se, com um concerto dos The Doors no interior do meu chuveiro! Tudo, tudo, tudo, aqui e agora. Que visão extenuante! 

As primeiras estrelas do primeiro Universo brilham ao alcance de um telescópio - observar as estrelas é observar o passado, todos o sabemos. Contudo, permanecemos crianças num quarto de brinquedos a brincar ao "Tá? Não Tá!", fiéis aos relógios que tiqueteiam a marcha da nossa vida, sobre uma hipotética linha de tempo, traçada por certa deidade geómetra!

Na esquina de um mundo alternativo qualquer, lugar onde o tempo faz a curva, rapariga choca com rapaz.  Ela sou eu, bastante mais jovem, tal como tu, na casa dos vinte e ainda com os pés timidamente assentes no tabuado do teatro. Aqui e agora. Eis-nos. Mas não nos vemos. Tu e eu, a batalha de Waterloo, o T-Rex na janela e os The Doors no chuveiro, a realidade invisível. Invisível e cruel. Nada somos um para o outro até arrancarmos o lençol entre os nossos dois mundos. Até nos dedicarmos a observar aquilo que, à partida, não deve, não pode, ser real.

Mas um dia vou conseguir acertar no Encantamento e, numa noite qualquer, olharei para ti e logo ali me verás. Caso prolonguemos o momento da observação seremos, à vez, um olhar sobre uma estrela. Não há tempo. Apenas Espaço. Assim o dizem os tais cientistas.

Filme a ver:
O que Raio Sabemos Nós?


sexta-feira, 7 de agosto de 2015

A magia do número 2000

Obrigada!

Ora, andava eu de passagem à beira de um rio, quando certa formiguinha parou a sua marcha para me avisar: "Encantadora,  já somos dois mil!". Seria o aviso de uma praga? De regresso à minha cabana (com wi-fi) confirmei que o número 2000 correspondia, nem mais, nem menos, ao número de visitantes a este blog desde o primeiro post no final de Maio! Hoje (07/08/2015) o número subiu para 2022 espreitadelas! Prometo, leitores curiosos e atentos, continuar nesta demanda de encantamentos, partilhando-os convosco e na melhor das boas vontades. Quantas mais forem as formigas que espreitam os encantamentos que aqui se dispensam (e os aplicam, espero eu!), mais feliz e motivada estarei para imaginar e fabricar outros tantos. Obrigada, queridas formigas, por acreditarem que, deste lado da floresta, existe alguém dedicado a encantamentos capazes de  vos desviar - nem que seja por alguns minutos - de certos carreiros entediantes. Aguardem pelas novidades!

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Da invisibilidade da mulher madura

«Ser é ser percebido»

George Berkeley (1685-1753)


Em tempos dei por mim no grupo de pertença que então rotulei como o das "mulheres quase invisíveis"; esclareça-se, o grupo das solitárias e maduras. Quanto ao outro, o grupo das mulheres casadas, unidas de facto, entre outras modalidades de se estar junto, existe sempre algo que as coloca na ribalta: o nascimento de um novo rebento, um aniversário comemorado entre casais do mesmo "círculo de confiança", a presença de ambos em festas e celebrações com fotógrafo contratado (venha mais um clique a confirmar o dois-em-um), ocasiões muitas vezes reveladas, sem pudor, nos murais ele/ela do facebook. Não, isto não é inveja - é a constatação científica de um facto: o status concedido à mulher casada, versus a despromoção social da mulher sozinha e madura a qual, ao consentir divorciar-se ou meramente manter-se solteira, torna-se naquele bico-de-obra quando se trata de compor uma mesa de copo-de-água /baptizado/ bodas: colocamos fulana ao pé de fulano?, por deus, não, lembra-te que fulano agora tem namorada, aquela australiana, como explicamos depois a foto dele perto de fulana? então sentamo-a na mesa 10?, por deus, não, são todos casados e sabes como fulana é gira e como sicrano gosta das giras! Então onde a sentamos, estou a ficar farta, nisto há uma hora!...instala-se o desespero até tudo se resolver numa epifania: a mesa dos miúdos! Estás louco, vais sentá-la com...? Sim, até vai ser bom, perfeito, pois fulana tem jeitinho com crianças e até pode entretê-las. Ufa! Vá, embora telefonar ao tipo do bolo!
Minhas caras formigas, divorciadas, solteiras ou viúvas: quando vos sentarem à mesa da linda menina das alianças e respectivos amiguinhos, quero-vos atentas a este primeiro passo no caminho sem retorno da invisibilidade social. Podem até discordar comigo, mas esta Encantadora acumulou experiência suficiente para, do alto da sua árvore mágica, gritar aos quatro ventos: "Zeus nos livre de nos transformarem em números ímpares!". De igual, não aconselho o recolhimento. A solidão, uma vez companheira de sofá, refastela-se num comodismo arrastado até à morte, diante da TV. Contra a invisibilidade corrosiva do corpo e da alma, confio apenas no seguinte Encantamento: Apercebam-se do quanto são interessantes. Sim, não chega cuidar da imagem, para manter uma audiência que vos respeite - sirvam-se das vossas histórias de vida, que já são muitas e plenas de colorido. Riam-se, tomem-se menos a sério. Revelem-se frágeis, revelem-se duras.Verão como o o número ímpar da mesa (vocês) se desdobrará em múltiplos infinitos. Podem não ter marido ou filhos, mas escrevem, pintam, gerem empresas, companhias de teatro, escolas. As histórias que daí derivam são os nossos filhos e maridos. Falem deles como os casais de facto conversam sobre os seus: apaixonada e despudoradamente. Quando deres por ti, solitária formiga, alguém irá lembrar-se de perguntar porque diacho estás sentada no lugar errado da festa e, num impulso sem precedentes, pedirá a tua mão para dançar. Palavra de Encantadora!

Aconselho esta leitura divertida: