Na manhã daquele primeiro dia, fui acometida por um ataque de asma, seguido de vómitos e ranho, num choro tal que fez meu pai correr a enfiar-se no carro, mantendo-se ali bem seguro até passar a tempestade. Todos julgavam que ia ser fácil colocar-me a pasta vermelha nas costas. Não foi.
Pois, ali vinha a primeira classe (agora designada pelos burocratas do ME como 1.º ano do 1.º Ciclo). Grande foi o terror de quem estava prestes a pisar um novo planeta, apenas munida de um bibe e uma cesta de almoço. Perante a dimensão do caos causado por uma miúda de seis anos (bomba de asma, lenços, correrias à casa-de-banho) a minha mãe deitou mão a um último recurso. Um livro. Mais precisamente, o "Livro de leitura da 1ª Classe". Colocou-me o livrinho cor-de-laranja nos joelhos: "Olha, os desenhos do teu livro de leitura são da avó Maria". Referia-se à pintora e desenhadora
Maria Keil.
Tinha-a conhecido naquele mesmo Verão, na famosa Quinta em Sacavém, pontinho de Portugal Continental onde aconteceu o momento que iria transformar-me numa contadora de histórias: Maria Keil oferecera-me um teatrinho de fantoches de dedo, o "Teatro do Minimim", com personagens de sua autoria. Era (e ainda é!) o meu primeiro teatro a sério.
A evocação daquele episódio suavizou-me as emoções.
Apesar de adivinhar a impaciência do marido sentado ao volante, a minha mãe parou o tempo e deu-me a ver as ilustrações do livro de capa laranja, na qual meninos em fila entravam no novo planeta da escola primária. Ela folheou páginas e páginas de desenhos límpidos, de linha clara, simples na evocação de uma vida simples: havia uma senhora de avental a fazer gelados («Letra Gê: o gelado leva leite, gemas e açúcar»), meninos de braços levantados em direcção ao "A, E, I, O, U", como quem tenat alcançar pássaros em vôo.
A letra "I", associado ao desenho de uma igreja de bonecas. Lembrei-me, a avó Ester vai à igreja - lugar secreto para mim, filha de ateus. Mas aquele "I", o "I" de igreja, tão bem desenhado, como se fora manuscrito, tão acessível ao olhos, mostrou-me como alguns segredos, afinal, podiam ser revelados: bastava aprender a ler.
A leitura seria, então, a entrada para todos os lugares secretos dos "grandes". Mesmo os segredos que a minha avó ditava baixinho, na obscuridade de uma nave. O tempo voltou a andar. Engoli lágrimas, sequei o ranho, respirei fundo. De mão dada com a minha mãe, atravessei com passos valentes o nosso jardim, rumo à Lua.
"O Livro da Primeira Classe", da autoria de Maria Luísa Torre Pires, Francisca Laura Batista e Glória N. Gusmão Morais também conta com ilustrações do artista plástico Luís Filipe de Abreu a par das de Maria Keil. A 1.ª edição data de 1967, com a chancela da Editora Educação Nacional de Adolfo Machado. Nunca o vi reeditado. É uma pérola perdida.
Quanto ao "Teatro do Minimim", a partir dos meus sete anos entrou comigo em digressão. Era o ponto alto das festas de aniversário. Havia somente uma condição para haver função nesse dia: ninguém, além de desta vossa Encantadora, podia tocar no teatro e respectivas figuras. Tal inflexibilidade deu bons frutos. Ei-lo, intacto, desde o século passado.
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O Teatro do Minim, personagens e estrutura |
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O Polícia, a Rainha e o Diabo. |
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