sexta-feira, 11 de setembro de 2015

A cama de Procusto

Ou cabe ou não cabe



Procusto, deus menor da mitologia grega, possuía uma cama, não para dormir, mas para dela se servir na tortura dos mortais que raptava. Uma vez deitados e amarrados, seguia-se o suplicio: caso o coitado excedesse as medidas do leito, Procusto não fazia por menos: cortava o que sobrava, desde pés, pernas, mãos, braços, até a própria cabeça da vítima. Sucedendo o inverso, este deus dos sádicos e persecutor das camas standartizadas, esticava-lhe o corpo até o conjunto de ossos e carne preencher o espaço. Adiante-se que  Igreja Católica, adversa dos paganismos greco-romanos, aproveitou-se sem pruridos do método do deus Procusto nos tempos negros da Santa Inquisição. Ou corta ou estica. Ou cabe ou não cabe.

Na esteira do mito, galgando-se uns quantos séculos de história da tortura, certa companhia aérea britânica de baixo custo (lowcost) possui o seu próprio método inquisitório no que concerne à nossa bagagem de mão. A cama foi substituída por uma grade tridimensional. Um dos assessores deste Procusto moderno percorre a fila de embarque em busca de vítimas, submetendo-as a um escrutínio tão rígido que, daqui a séculos, fará decerto parte da mitologia aeronáutica. À semelhança da cama do antigo deus da intolerância, a nossa bagagem de mão ou cabe ou não cabe, na tal estrutura de ferro, standarizada. Caso exceda, vá lá, um centímetro, o sujeito olha-nos como se transportássemos venenos. Vai daí, ordena que paguemos 40 euros pelo inchaço, o preço de colocar a bagagem no porão. Tentamos convencê-lo de que um centímetro é apenas isso. Um centímetro. "Tem que resolver o problema!", ruge baixinho. 



Aqui se inicia o martírio: abre-se mala, retira-se um objecto, fecha-se mala, enfia-se no paralelipípedo da grade, mas não, o centímetro continua lá, o volume não encaixa na estrutura por nada deste mundo. A esta altura, a vítima deste novo deus do ar já é alvo de atenção de todas as formigas na fila de embarque, ao mesmo tempo que uma gota de suor lhe escorre espinha abaixo, consequência do esforço de amassar ao máximo o conteúdo da mala. A voz de Procusto parece rugir pelos altifalantes do aeroporto: "Corta ou estica, estica ou corta! Cut or strech, strech or cut!".

Já pensamos em rendição quando uma vozinha no carreiro de formigas sugere: dê-me algumas das suas coisas, levo-as na minha mala de mão, já que não trago mais nada. Depois lá fora devolvo-lhas! É irregular, já se sabe, porém irrecusável, para mais tratando-se de uma formiga de parcos recursos. O jovem assessor do deus da intolerância, tendo assistido à operação do troca-troca, aproveita-se da lentidão do embarque para caminhar ao lado da formiga (enervada e exausta) de modo a culpá-la de  provocar comportamentos terroristas.
Uma vez sentada no avião, os nervos em frangalhos, ela pede ao comissário de bordo algo que a acalme, como um chocolate quente. Pago, é claro. 

O Encantamento que proponho à Companhia aérea em causa é o seguinte: antes coloquem as bagagens nos lugares dos passageiros, tomando estes o lugar da carga e, como tal, enfiados no porão. Excepção feita a quem viaje em Executiva, formigas abonadas, com meios de pagar o despacho da bagagem que bem lhes entender. Se tal resolveria o problema do terrorismo aéreo? Duvido.

Daqui a mil anos, a lenda iniciar-se-á com as seguintes palavras: "No tempo em que o Céu era propriedade dos ricos...".

3 comentários:

  1. são os Barraqueiros dos céus, já lá vai o tempo que voar era uma extravagância
    agora é não é transporte de gado mas quase

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  2. Tive o privilégio de conhecer este post na sua génese. Andei com ele ao colo, como se costuma dizer.

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