Ou cabe ou não cabe
Procusto, deus menor da mitologia grega, possuía uma cama, não para dormir, mas para dela se servir na tortura dos mortais que raptava. Uma vez deitados e amarrados, seguia-se o suplicio: caso o coitado excedesse as medidas do leito, Procusto não fazia por menos: cortava o que sobrava, desde pés, pernas, mãos, braços, até a própria cabeça da vítima. Sucedendo o inverso, este deus dos sádicos e persecutor das camas standartizadas, esticava-lhe o corpo até o conjunto de ossos e carne preencher o espaço. Adiante-se que Igreja Católica, adversa dos paganismos greco-romanos, aproveitou-se sem pruridos do método do deus Procusto nos tempos negros da Santa Inquisição. Ou corta ou estica. Ou cabe ou não cabe.
Na esteira do mito, galgando-se uns quantos séculos de história da tortura, certa companhia aérea britânica de baixo custo (lowcost) possui o seu próprio método inquisitório no que concerne à nossa bagagem de mão. A cama foi substituída por uma grade tridimensional. Um dos assessores deste Procusto moderno percorre a fila de embarque em busca de vítimas, submetendo-as a um escrutínio tão rígido que, daqui a séculos, fará decerto parte da mitologia aeronáutica. À semelhança da cama do antigo deus da intolerância, a nossa bagagem de mão ou cabe ou não cabe, na tal estrutura de ferro, standarizada. Caso exceda, vá lá, um centímetro, o sujeito olha-nos como se transportássemos venenos. Vai daí, ordena que paguemos 40 euros pelo inchaço, o preço de colocar a bagagem no porão. Tentamos convencê-lo de que um centímetro é apenas isso. Um centímetro. "Tem que resolver o problema!", ruge baixinho.
Aqui se inicia o martírio: abre-se mala, retira-se um objecto, fecha-se mala, enfia-se no paralelipípedo da grade, mas não, o centímetro continua lá, o volume não encaixa na estrutura por nada deste mundo. A esta altura, a vítima deste novo deus do ar já é alvo de atenção de todas as formigas na fila de embarque, ao mesmo tempo que uma gota de suor lhe escorre espinha abaixo, consequência do esforço de amassar ao máximo o conteúdo da mala. A voz de Procusto parece rugir pelos altifalantes do aeroporto: "Corta ou estica, estica ou corta! Cut or strech, strech or cut!".
Já pensamos em rendição quando uma vozinha no carreiro de formigas sugere: dê-me algumas das suas coisas, levo-as na minha mala de mão, já que não trago mais nada. Depois lá fora devolvo-lhas! É irregular, já se sabe, porém irrecusável, para mais tratando-se de uma formiga de parcos recursos. O jovem assessor do deus da intolerância, tendo assistido à operação do troca-troca, aproveita-se da lentidão do embarque para caminhar ao lado da formiga (enervada e exausta) de modo a culpá-la de provocar comportamentos terroristas.
Uma vez sentada no avião, os nervos em frangalhos, ela pede ao comissário de bordo algo que a acalme, como um chocolate quente. Pago, é claro.
O Encantamento que proponho à Companhia aérea em causa é o seguinte: antes coloquem as bagagens nos lugares dos passageiros, tomando estes o lugar da carga e, como tal, enfiados no porão. Excepção feita a quem viaje em Executiva, formigas abonadas, com meios de pagar o despacho da bagagem que bem lhes entender. Se tal resolveria o problema do terrorismo aéreo? Duvido.
Daqui a mil anos, a lenda iniciar-se-á com as seguintes palavras: "No tempo em que o Céu era propriedade dos ricos...".
são os Barraqueiros dos céus, já lá vai o tempo que voar era uma extravagância
ResponderEliminaragora é não é transporte de gado mas quase
Gostei! Barraqueiros do céu!
EliminarTive o privilégio de conhecer este post na sua génese. Andei com ele ao colo, como se costuma dizer.
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