segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Amor adormecido

Com o Barroco, as pinturas animaram-se  de formas em movimento e torções inovadoras, exagerando-se igualmente os contrastes entre luz e sombra.  Os corpos humanos também ganharam uma outra dimensão, bastante mais realista e terrena.


Caravaggio: Amore dormiente (71x105)
Galleria Palatina, Palácio Pitti (Florença)
Se aquelas eram as nova regras aplicadas à estética, o pintor Caravaggio (1573-1610) extravasava-as, ao pintar prostitutas, bêbados e gente comum, mesmo nas  cenas bíblicas encomendadas pelo Vaticano. Miguelangelo Mersi, di Caravaggio, era uma formiga bastante fora do carreiro de pintores que (ainda) resistiam aos tempos e idealizavam as figuras humanas nas suas criações, proporcionando-as mediante os cânones clássicos.

Em certa noite (ou dia) de vagueio pelas ruas (de Roma, presume-se), pasta de esboços na mão, Caravaggio deparou com uma criança adormecida numa viela. Visão normal - abandonavam-se crianças, eventualmente recém-nascidos, como hoje em dia se descartam animais de estimação à beira da estrada. À época, uma formiga a mais neste mundo era um incómodo para qualquer formigueiro miserável e destes havia-os aos milhares. Neste caso, tratava-se de um menino de dois, três anos de idade. Formiguinha descartada do carreiro do afecto, criança que Caravaggio captou e modelou com o seu traço, banhando-a de uma luz reveladora do rosto visivelmente plebeu, aliado à barriga dilatada pela fome. Pormenores que qualquer renascentista descartaria na sua representação. Muito menos na representação do filho de Vénus: Amor, vulgo Cupido.

Como se lembrou ele, o pintor, de transformar aquele ser enjeitado no filho deusa da Beleza da mitologia greco-romana? O certo é que o dotou de asas e dos atributos que revelam a sua missão junto dos homens e mulheres: o arco e as flechas, as quais se adivinham embebidas do soro da paixão. Podemos entrever as suas formas bem seguras na pequena mão, apesar do abandono ao sono. Como se Cupido, após horas e horas de flechadas em corações, agora devotos ao amor ilimitado, escolhesse um recanto de uma cidade italiana para se recolher e repor forças.

Existe um encantamento nisto tudo. Ao mesmo tempo que se revela a natureza cruel da humanidade, sublimam-se as consequências dessa mesma crueldade impondo à vítima a personagem do Deus do Amor. Ele próprio uma criança destinada ao abandono - Zeus, o pai de todos, sabendo de antemão os problemas que um filho de Marte e Vénus poderiam causar, não quis acolhê-lo no Olimpo. Mas a deusa cuidou do filho às escondidas e Amor conseguiu crescer e manter-se junto da família de imortais. 

Queridas formigas, o encanto desta pintura reside, para mim, na união perfeita do mitológico Cupido com a realidade do menino abandonado. Amor adormecido e sozinho, por lhe ser negado deixar-se amar pelas leis sagradas do Olimpo; também a criança abandonada na noite romana porque as leis terrenas assim o permitiam. Contemplamo-a através dos olhos de Carvaggio durante os minutos que durou a realização do esboço. Vemos o quadro e quase desejamos retirá-la da moldura, permitindo-lhe uma vida plena de afecto, de carícias e risos. Mas é tarde de mais. Caravaggio, esse, fez o que podia. Pintou aquele puttus para a posteridade e, não contente com isso, ofertou-lhe um lugar perene no mundo dos deuses, num Olimpo com torrentes de ambrósia capaz de alimentar qualquer mortal pela eternidade.

Sobre Carvaggio:





2 comentários:

  1. Gostei muito deste post. Isto está cada vez melhor. Se o anterior estimilava a adrenalina, este estimula a compaixão.

    Realmente o período barroco é uma época de extremos. Penso que, em termos estéticos e filosóficos, poderá surgir nos próximos tempos (décadas) algo similar, obviamente enquadrado aos padrões hodiernos.

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  2. Ainda bem que gostaste! E sim, o objectivo é o estímulo da compaixão. "Isto está cada vez melhor". Wow!

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