quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Trabalho Sombra - pagar para desumanizar


Começo por um exemplo típico: certa formigas sai do local de emprego / creche / ginásio e dirige-se ao supermercado de automóvel. Pelo caminho, encosta no posto de gasolina. Serviço onde dantes existiam funcionários (mal) pagos para encher o depósito. Como a base actual é cortar nos empregos (mesmo nos de salário mínimo),  é o cliente a substituir a pessoa entretanto dispensada. Podemos até sofrer de artrite, tendinite, cataratas e ter uma criança a berrar de fome agarrada às penas: somos nós a retirar e a por a mangueira no descanso e a deslocar-nos à caixa de pagamento. Por vezes com dois ou três formigas em fato-macaco sentadas em botijas, ocupadas a jogar à bisca. Que querem? O trabalho não é deles. Ou seja, é nosso. Pela mesma lógica, não tendo pago, nem ao funcionário ausente, nem à nossa pessoa,  trabalhamos de graça para a empresa petrolífera. Mais: chegamos a pagar por isso! 

Lembro-me de ser miúda e entregar ao Sr. António da mercearia a lista das compras. Era ele que ia buscar os produtos e que os acomodava no saco (de pano). Agora A senhora de 85 anos tem de saber o que é um código de barras e como posicioná-lo sob o leitor da caixa automática do supermercado. Acontece atrapalhar-se, as formigas na fila iniciam um coro minimalista de resmungos, a velhinha enerva-se...tudo por causa de um pacote de bolachas. As formigas-caixa de nome na lapela voltam costas à cena. O trabalho, mais uma vez, não é delas. É da máquina e dos seus operadores,  novos ou velhos. É Trabalho Sombra, executado  para as grandes empresas e, repito, pelo qual chegamos até a pagar. Os vales de desconto são migalhas de retorno pelo nosso desempenho na selva do capitalismo.


«Presentemente, na nossa sociedade, vivemos um paradoxo curioso: apesar de terem sido criados inúmeros meios tecnológicos para nos facilitarem a vida, tudo parece mais difícil e o ritmo do dia-a-dia não pára de aumentar, contribuindo para o nosso desgaste. Trabalhamos muito mais do que a algum tempo atrás, estamos a desempenhar cada vez mais tarefas com a falsa crença de podermos ganhar tempo. O Trabalho sombra parece imparável, tendo-se infiltrado sub-repticiamente nas nossas vidas, como se fosse uma praga invisível.» Pedro Afonso, médico Psiquiatra.

Os exemplos de Trabalho Sombra estendem-se a praticamente todos os minutos da nossa vida, estejamos nós acordados. Estendem-se ao ponto de nos absorverem tempo. Tempo precioso, dado de bandeja aos empresários, que assim cortam nos custos enquanto escravizam a (já) emagrecida massa laboral, como no caso de seguranças fardados a arrumar carrinhos de compras nos estacionamentos - Trabalho Sombra à descarada!


Somos, das formigas europeias, as que mais horas de trabalho carregam às costas. Sim, eu vi os números e os gráficos, os mesmos que pecam por omissão: nenhum deles tem em conta o dito Trabalho Sombra. Somem às vossas 35 horas semanais outras 3 ou 4 para obterem o tempo real de trabalho, parte dele despendido a montar uma estante segundo instruções escritas em mandarim. Nunca é demais lembrar: tais horas extra pertenciam a alguém, agora desempregado pelo faça-você-mesmo. 

Eis o Maior Encantamento de Todos: demitam-se dos Trabalhos Sombra que vos escravizam, formigas! Existem sempre alternativas, meios para se escusarem de trabalhar para quem abusa do vosso tempo, garantindo assim cofres cheios em modo automático. Descobri uma bomba de gasolina com funcionários prestativos, aos quais dou bolinhos e uma nota de gorjeta pelo Natal. Se pago o saco, peço amavelmente ao senhor da caixa do supermercado que me ajude a enchê-lo, tão amavelmente que até me mostra a foto do rebento recém-nascido. Não se trata de economia paralela (no caso da gorjeta) nem de paleio deitado fora. Trata-se de resgatar a nossa humanidade, em gestos em que todos ficam a ganhar. 

Palavra de Encantadora!

3 comentários:

  1. Exatamente, Encantadora, "Trata-se de resgatar a humanidade". Também prefiro ser atendido com humanidade e nem imaginas como é difícil cumprir esse desígnio numa cidade como Lisboa. Felizmente, a Amadora onde vivo, num ambiente de bairro, esse clima é às vezes possível.

    Queria apenas realçar um aspeto: Acredito que todas as gerações de pessimistas da história pensaram ou pensam que nunca houve uma época tão má como a sua e temos relativamente ao passado uma ligação mais afetiva do real. Apesar destas duas contingências psicológicas, estou em crer, que a nova economia é mais desumana, porque normaliza e especializa em demasiado, tentando aproximar as pessoas às características das máquinas. Nunca houve na história tantos "burn-outs" e cansaço por desgaste laboral e vivencial. Acredito que as gerações mais velhas não entendam isto. Mas é uma realidade.

    Aconselho a leitura de dois livros para perceber a camisa de "sete-varas" onde estamos(humanidade ocidental) metidos:

    "Psicopolítica" e "A sociedade do cansaço" - de Byung-Chul Han ( Investigador sul-coreano naturalizado alemão)

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  2. Obrigada pela dica, Luís Miguel! Vou á livraria do bosque vizinho hoje mesmo. Abraço!

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  3. Lembro-me de em tempos ler algo dos anos 40 (ou por volta disso), em que se dizia que a mecanização iria finalmente permitir a sociedade do lazer.

    As maquinas iriam permitir fazer mais em menos tempo e portanto permitir mais tempo livre para actividades criativas, onde o homem atingisse o seu verdadeiro potencial e se tornasse mais rico, no verdadeiro sentido da palavra.

    O que aconteceu foi que em vez de se reduzir o numero de horas reduziu-se o numero de pessoas, porque assim sai mais barato. O desemprego ajuda a manter baixo o salário de quem ainda tem trabalho.

    Quem fica a lucrar com isto é óbvio. Porque o permitimos? Porque vivemos no admirável mundo novo.

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