domingo, 10 de abril de 2016

A arte de bem jardinar

Uma varanda, jardim suspenso sobre a estrada. Adquiridas as flores em vasos provisórios, falta distribuí-las pelos canteiros. Também já temos a esta terra sem perfume a terra -  mesmo assim, terra que  entranha nas unhas, mas não suja por ser terra. O fertilizante é artificial, mas funciona, diz quem o vendeu a bom dinheiro. Preparamos o dia de jardinagem: atapetamos as lajes com jornais agora sem notícias; calçamos as luvas, abrimos a saca de terra... afinal cheira mesmo a terra! O ar preenchido pelo canto dos pássaros conforta-nos pela chegada da Primavera, genuína e democrática. Chega a todos, mesmo a estes jardineiros, donos do minúsculo jardim urbano suspenso sobre a rua demasiado movimentada, demasiado poluída...que importa? É o nosso jardim.

Ah, pois, a saca de terra, o ancinho e a pá que parecem de brincar, mas servem. Estas flores vieram de mãos de jardineiros autênticos, os quais as preservaram, estimadas nas cores e cuidadas no viço nos viveiros de origem. Flores e plantas que acarinhamos, que agora transplantamos com cuidados de cirurgião para os canteiros de plástico. Passam as horas, nem damos por elas. As flores tomam os seus devidos lugares no jardim suspenso sobre a avenida. Regam-se, entre palavras murmuradas, pois às plantas falamos com amor e assim florescem saudáveis. Em cada manhã, descerradas as cortinas, ei-las, céleres no desabrochar dos botões. Rosas, sempre-noivas, maravilhas, amores-perfeitos, ou então as de nomes mais complexos, como calachoés, falanopsis, oleandros, cinerárias...orgulhamo-nos de todas, apresentamos-as aos amigos, como se fossem família ou aquelas coisas de estimação que nos recordam a juventude.

Certa noite há ventania que nos desperta. Voltamos a dormir - a Primavera protege todos os seus filhos e não vai ser uma aragem que os irá ferir ou matar. Descerradas as cortinas na manhã seguinte, temos a impressão de ter havido um raid aéreo sobre a nossa plantação. Terra vertida, entornada dos canteiros, flores despidas, quebradas nos talos pelas unhas do vento. Flores geladas pelo súbito fragor de uma invernia inesperada. Com o coração pesado, limpamos o jardim, cortamos aqui e ali, até cortarmos quase tudo, um botão ou outro resistiu. Contudo, meia-dúzia de sobreviventes não chegam, não enchem, não inspiram, não se apresentam a ninguém. Aguardam apenas um novo tempo de morrer.

Passado o estupor paralisante do momento, contamos o dinheiro, voltamos aos viveiros e às conversas de como se faz com os antúrios, as rosinhas e os brincos-de-princesa. Regressamos à varanda devastada e à jardinagem forçada. Atapetamos o solo com jornais ainda por ler. Há que permanecer nos trabalhos do jardim. Há que resistir às surpresas. Aos súbitos Invernos da alma. Há que persistir no amor. Há que, eternamente, florescer.

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