sábado, 10 de outubro de 2015

A fruteira errante e outros fenómenos

A vida não é uma pergunta a ser respondida. É um mistério a ser vivido. Buda
Por onde começar? Talvez pela casa de dois sobrados, no seu pouso antigo na encosta da montanha. Ou talvez comece pelo primeiro fenómeno: a prima que hipnotizava galinhas. Ou pelo segundo, a criada da casa, Maria. Uma Xerazade descalça e analfabeta, porém exímia inventadora de histórias, aventuras em países sem nome, pois do mundo ela apenas conhecia aquela casa em Santo António e o namorado magala. E como explicar o fenómeno da fruteira? É precisamente este, o terceiro fenómeno da casa, de que hoje se me ocupa a mente. Numa primeira conclusão, a mesma entidade sobrenatural que colocou um cérebro brilhante no corpo de uma criada de servir, resolveu dotar um objecto inanimado de acção própria. A fruteira, durante a noite, desaparecia da mesa de jantar. 


Conta o meu pai:  pela manhã perguntavam-se: "Onde está hoje a fruteira?", ou então, "Já viram a fruteira?". Alguém a descobria e, conformado, repunha-a ao centro da mesa. Ha! A mesa, não se esqueçam da mesa, conta agora o meu avô. Estávamos todos sentados a comer e sentíamos um cão a esgueirar-se por entre as pernas. Ninguém se incomodava em espreitar. Era facto adquirido - ali não havia cão algum. Apenas ar com movimentos de cão.

Pois, a fruteira. À noite no centro da mesa e de manhã em lugar incerto. A errância da coisa e a busca diária pelo seu paradeiro já fazia parte da rotina da casa. Erradicada a ideia de um brincalhão se dar à maçada de, noites, não, anos a fio, mudar a fruteira de lugar, afastou-se a hipótese de ali haver mão de gente. Era um fenómeno. Mais precisamente, uma embirração. A embirração de um fantasma. 

Conta o meu pai: quando se iam deitar, pequenos e grandes suspendiam a respiração no escuro: o que fará ele, esta noite? De súbito, ouvia-se bater com força à porta de um quarto, o som do punho de um homem contra a madeira, pum!pum!pum! Certas noites, conta o meu pai, ouviam-se passos no corredor e depois os estampidos de objectos a rebolar escada abaixo. Batatas, sapatos, tigelas? Bem se podia ir espreitar, tentar saber, como, o quê, mas a escada permanecia muda no escuro, severa na sua presença antiga.

Pois, a fruteira. Tratava-se de um objecto horroroso, mas do qual ninguém se livrava por ser prenda de casamento. Somente o espírito (um esteta) não entendia porque se aceitava tamanha feiura. O mesmo espírito que estremecia portas, fazia rebolar coisas escada abaixo e, horror dos horrores, puxava pelos pés da prima hipnotizadora com ela a berrar, deitadinha, "Estão a puxar-me pelos pés! Estão a puxar-me pelos pés!". As noites em Santo António podiam ser muito agitadas e procurar uma fruteira, ainda por cima feia, era coisa de somenos perante os fenómenos atrás descritos. O fantasma, acompanhado pelo espírito do seu próprio cão, vivia junto de uma família há muito resignada com a sua presença e, claro, com as respectivas andanças da fruteira. Nunca alguém pediu esconjuro e, muito menos, um padre exorcista. Se afugentássemos tudo o que não compreendemos, pouco restava deste mundo de deus, não é verdade, Maria?

Era assim, conta o meu pai. Era assim, conta o meu avô. Era assim, conta a prima, a mesma que empoleirava galinhas em fila sobre a mesa da cozinha, pousava o seu olhar em cada uma e era vê-las transformadas em estátuas de jardim. Coabitar com o impossível era vulgar como ir à missa. Nem sequer à Maria, católica fervorosa, lhe incomodava a assombração. Se as almas do outro mundo perdiam condição diante das suas histórias, um fantasma, então, tinha tanto de sobrenatural quanto um gato vadio. Murmurava vade retro, descalçava os sapatos e ia em demanda da fruteira, na esperança de encontrá-la em cacos.

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