quinta-feira, 16 de abril de 2015

A Nódoa

Aquele homem permitiu que outros dois outros homens, perfeitos desconhecidos, se infiltrassem na casa de família, reunindo-se à família em redor da toalha de linho, bordada com motivos pascais. O nosso homem, que designaremos por Homem-Ambição, confiava naquele almoço – perfeito álibi – para beneficiar das influências daqueles Jovens-Oportunidade. Estava em causa a sua ascensão para o Últíssimo Andar da Empresa. No ano anterior, tinha vindo o Velho-Oportunidade, o Figurão; depois do galo cantar e Pedro negar três vezes o nome do filho do seu deus, o Velho entregou ao Homem-Ambição o escritório no Andar-Sanduíche, entre o piso dos escravos e o ante-ante-ante penúltimo andar do Edifício. Só que, entretanto, o nosso homem usou esse mesmo ano para cobiçar um lugar no Últíssimo Andar, nem mais nem menos o gabinete em frente ao do Velho.


Mas a este almoço também ela compareceu: a Nódoa. Foi assim: o filho pequeno do Homem- Ambição acordou da sesta a pedir colo e comida. A mulher – apenas Mãe – sentou-o  ao colo e diante do menino colocou uma tigela com algo cremoso. À primeira colherada, A Nódoa saltou para a toalha e eis que ela, a Dona-de-casa, não conteve o desabafo: tão caro, caríssimo, mandar limpar uma toalha destas! O Homem-Ambição também se afligiu, lembrando-se subitamente do buraco na sola do sapato direito forrado a papel de jornal. Saiu da mesa e foi consultar o Grande Manual das Nódoas. Os dois Jovens-Oportunidade sorriram. Sorrisos indulgentes de quem reconhece o esforço da escalada, numa montanha cuja configuração muda continuamente, confundindo o alpinista na sua ascensão.

Lida a receita, o Homem-Ambição foi buscar o esfregão. Para espanto de todos, à semelhança da Montanha Caprichosa do Poder, A Nódoa mais se espalhava, mudava de cor, de forma, escapava-se às investidas do esfregão e ora aumentava, ora diminuía. Enfim, queria brincar. Daí a muito tempo (já escurecia) os Jovens-Oportunidade despediram-se do Homem Ambição, cujas mangas arregaçadas revelavam os cotovelos esfolados dos escravos. Quando viu que o Jogo terminara, a Nódoa encolheu, encolheu, sumindo-se no fino linho da toalha, que assim pôde reassumir a sua total e perfeita Dignidade.

2 comentários:

  1. Bom mini-conto. A insustentável leveza de uma nódoa. Gostei de ler. Merecia um texto maior. Um conto.

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  2. Obrigada, Luís. Vou pensar no assunto!

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