«A tua tarefa é descobrir o teu trabalho e, então, com todo o coração, dedicares-te a ele.» Buda.
Van Gogh / Auto-retrato com ligadura - Nacional Gallery |
O que é um Mito? Algo próximo da
lenda ou do conto de fadas. O dicionário
Houaiss define o mito como uma «afirmação fantasiosa, inverídica, que é
disseminada com fins de dominação, difamatórios, propagandísticos…». A ser assim, uma das características do mito é assemelhar-se ao mero boato: uma história que se espalha boca-a-boca para justificar algo inteiramente infundado.
Quando uma alminha profere a célebre frase: "Aquele/aquela é um/uma artista", muitas das vezes insinua que ele/ela é alguém com um estatuto à parte, infelizmente baseado nos tais mitos que rodeiam a arte e a vida dos seus produtores. O Encantamento proposto para hoje tem por alvo desconstruir
4 mitos fundamentais, que extraí de um longuíssimo rol de disparates. Ei-los:
4 mitos fundamentais, que extraí de um longuíssimo rol de disparates. Ei-los:
Disparate número Um: os artistas vivem na pobreza e à beira da loucura
Algumas das amigas formigas terão
uma história sobre um parente que decidiu abandonar o negócio da família para
se tornar “artista”. O cenário é sempre o pior: nunca ter dinheiro para pagar
as contas, vestir-se mal, comer pior e manchar o bom nome dos antepassados com
atitudes excêntricas. Um dos episódios mais conhecidos da História da Arte (ainda é) o da orelha de Van Gogh. Num momento de loucura cega, o pintor cortou o lóbulo da orelha direita e enviou a macabra encomenda a uma prostituta.
Em Portugal existem artistas que vivem das suas criações. Admito: poucos. Mas existem. Pintores, escultores, actores, bailarinos e músicos, vivem das suas paixões e, que eu saiba, com as orelhas e a saúde mental intactas.
Em Portugal existem artistas que vivem das suas criações. Admito: poucos. Mas existem. Pintores, escultores, actores, bailarinos e músicos, vivem das suas paixões e, que eu saiba, com as orelhas e a saúde mental intactas.
Disparate número dois: a arte é cara, portanto só os ricos a podem comprar.
Van Gogh /Jarra com Margaridas e papoilas |
Voltemos a Vincent Van Gogh. Sabemos que vendeu, em vida, apenas um quadro, uma natureza-morta intitulada "Jarra com margaridas e papoilas". Se calhar por um preço irrisório - algumas das suas pinturas foram trocadas até por pratos de comida. A 4 de Novembro do ano passado, a pintura foi arrematada num leilão da Sotheby's pela quantia astronómica de 40 milhões de euros. Serve este apontamento para dizer que o
investimento em arte não é, obrigatoriamente, um investimento ruinoso. Mais: pode até auxiliar uma jovem promessa. Neste ponto refiro um elemento
fundamental: aconselhamento especializado. Não me canso de
levar as mãos à cabeça quando vejo carreiros de formiguinhas adquirirem objectos de gosto e valor artístico duvidosos com
vista a decoração da sala de visitas. A melhor alternativa (e talvez a mais
barata), seria rumar à “galeria perto de
si”, pedir catálogos, ver a exposição patente no espaço, explorarem com o
galerista as obras da reserva ou, tão-somente, solicitarem o tal
aconselhamento. Acredito que, em 99% dos casos, saíam com uma produção artística que o tempo se
encarregaria de valorizar. Poderá dar-se o caso dessa obra, desse tal “valor
seguro” arrevesar-se com os tons das cortinas e da carpete? Sim, e daí? Mais
vale ter uma boa gravura de um jovem artista português em
ascensão, do que uma natureza-morta pintada por um anónimo e que mais tarde
qualquer herdeiro poderá incendiar, sem qualquer pingo de remorso, juntamente com os
cortinados desbotados e a carpete puída.
A reboque do
tema “valor seguro”, passemos ao disparate número três: os artistas são pessoas
materialmente desprendidas. Na grande
maioria dos casos, a afirmação ajusta-se. Em Portugal, muito do teatro é suportado, em grande parte, pela boa vontade e voluntarismo de quem o faz. Mas a tendência geral é confundir
desprendimento com ignorância financeira. Confunde-se o conceito de riqueza com o de abundância. Uma
pessoa rica não será obrigatoriamente abundante, uma vez que a abundância inclui factores
impossíveis de mensurar como o possuir e dar amor, gosto pela vida, ser bondoso, respeitado…Mas
fiquemo-nos pelo mito da ignorância financeira. Charlie Chaplin, o criador da inesquecível personagem, "Charlot", aos 11 anos, órfão
e sem-abrigo, deambulava com o irmão pelas ruas de Londres a fazer pantominices
para quem lhes atirasse moedas. Tratava-se de pura auto-aprendizagem financeira. Em adulto e ao 3º filme, já ganhava dez mil dólares por semana. Isto em 1916! Chaplin conseguiu, em vida, aquilo que muitos ainda sonham: abundância. Viveu
para criar. Intensamente, com regras bastante próprias, mas com a inteligência
financeira suficiente para prosperar. Muita dessa Inteligência ganha com a vida nas ruas.
Depois do que
atrás ficou escrito, o disparate número
quatro soa-nos como o mais ridículo de todos: a Arte não é um trabalho
a sério.
A ideia feita, o
preconceito em relação ao trabalho artístico, o lugar-comum que enfia a arte no
mesmo saco de hobbys como a
jardinagem ou o coleccionismo, são exemplos de como um mito pode persistir com a
cumplicidade de todos os membros de uma sociedade. Ainda existe a fórmula, repetida desde a Revolução Industrial, pela qual é obrigatório trabalhar com horários rígidos e a toque de caixa. É claro que a iniciativa
própria deve aliar-se a um alto grau de disciplina e trabalho árduo para se
transformar em royalties. Mas isto é puro bom senso, nunca a admissão de uma forma de escravatura. Os artistas não têm horários, têm disciplina. Além de formação
adequada e paixão pelo que fazem. Um hobby
também é apaixonante e possivelmente lucrativo. Mas realizar um filme ou encenar uma
peça com limitações orçamentais, com o risco acrescido de ser um falhanço, é tão ou mais stressante quanto ser
corrector da bolsa de valores. Existe sempre o risco de um crash monumental que inclui a direcção da Companhia, a produtora, o trabalho dos
actores e dos técnicos, apoios e patrocínios, a vida familiar de todos e, em último caso, a
saúde dos indivíduos.
Alguns de vocês podem até achar que estes mitos já não têm lugar na era contemporânea, quando se encara a Arte enquanto processo civilizacional, fundamental para a experiência e evolução humanas. Decerto que a afirmação da criatividade e do talento, o reconhecimento da importância da prática artística e a valorização das criações, desde as artes plásticas às artes de palco, percorrem transversalmente todos os sectores da sociedade civil. Mas a minha experiência junto do “homem da rua” diz-me que uma ditadura de mais de 40 anos, ligada ao analfabetismo cultural, deixaram marcas indeléveis no corpo da sociedade portuguesa. Endeusam-se alguns artistas, ao mesmo tempo que se implora por bilhetes à borla para teatros, salas de cinema e museus. Há que sair deste carreiro e entrar, definitivamente, no século XXI.
"Sou uma impudência a mesa posta
ResponderEliminarde um verso onde o possa escrever
ó subalimentados do sonho !
a poesia é para comer." - extrato de "Defesa do poeta" de Natália Correia