quinta-feira, 14 de maio de 2015

A tortura do escorrega

Apesar de só ter entrado na escola em Janeiro, ela já sabia ler. E desenhava bem. Isso bastou. O carreiro de formiguinhas de bata cor-de-rosa uniu-se para dar uma lição à menina nova. Parecia fácil: era demasiado pequena para ter 6 anos. O carro do pai da menina também era pequeno. Pois, mais fácil não podia ser. 

Constituiu-se uma milícia, com um plano em três fases: 1 - Caso a professora elogiasse a menina nova, as formigas erguiam as antenas e entreolhavam-se com sorrisos maldosos, numa espécie de sinal  (a menina levou tempo a perceber a ligação entre esses dois fenómenos).  Fase 2 - tocava a campainha, o longo carreiro de formigas, do 1.º ao 2.º ano, seguia para  recreio, com as formiguinhas cor-de-rosa na dianteira. 

Era exactamente no recreio, com um simples escorrega de ferro e madeira, que a tal milícia se organizava em dois grupos: o primeiro obrigava a menina a subir os degraus do escorrega, enquanto que ao segundo cabia balançar-se na parte de baixo, tomando assim impulso para pontapear-lhe com força as pernas nuas. Fase 3 - Ameaçar: se contares, amanhã matamos-te! Em casa, a mãe, que nódoas negras são essas, fui eu que caí, mãe. Ela não queria morrer no dia seguinte. Os altos degraus de ferro custavam a subir. E elas eram muitas. Aí umas dez. 

A menina nova começou a relacionar a suas boas notas com a tortura do escorrega. Resolveu defender-se. Passou a ler mal, ao mesmo ritmo descompassado das colegas. Os desenhos, deixava-os a meio, não fossem ficar bonitos de mais. A mãe estranhou os maus resultados, foi à escola, fez perguntas à professora e esta, por sua vez, indagou as funcionárias que vigiavam o recreio. Sim, elas sempre tinham estado ali. Na verdade, enquanto decorria a tortura do escorrega, a menina via-as virar a cara para o lado. As formigas da milícia eram filhas de "gente bem", gente com dinheiro. Com o poder de tirar-lhes os empregos. Uma dela nunca mais apareceu. A directora do externato também castigou algumas das formigas cor-de-rosa. Nem todas, uns quantos cheques compraram silêncios e omissões. 

Hoje, ela ainda olha para um escorrega como se olha para para um objecto de tortura.  Basta um simples brinquedo para a crueldade ter um instrumento para se consumar. Quem diz brinquedo, diz arma. Diz bomba. Diz silêncio.

2 comentários:

  1. Boa história e tão exemplar. Parabéns! Tens de começar a escrever no Expresso ou na Visão. Verdade.

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  2. Obrigada! Foi um texto que me custou a sair...

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