sexta-feira, 1 de maio de 2015

O Homem da Enxada

Millet- O Homem da Enxada (1862) - 80x99cm

A IDEIA DO TRABALHO COMO VIRTUDE PROVOCOU UM ENORME ESTRAGO (Bertrand Russel - 1872-1970)


Hoje, minhas queridas e laboriosas formiguinhas, convido-as a passear fora do nosso carreiro para que observem comigo esta pintura de Jean-François Millet, "O Homem da Enxada".  O ideal deste pintor, da vertente Realista / Naturalista, era o de registar as personagens e ambiências do trabalho rural, enobrecendo-as enquanto lhes retirava qualquer romantismo bucólico. Com esta imagem do trabalho braçal, rude e sem outro auxílio salvo o da enxada neolítica, Millet expõem-nos, não somente um momento de suspensão do esforço, como todo um contexto em que é preciso trabalhar, trabalhar arduamente por cada punhado de trigo. Repare-se nas mãos apoiadas no cabo da enxada, na figura dobrada sobre a terra e, no que mais me impressiona: a boca. Uma boca de lábios entreabertos, onde se adivinha a respiração entrecortada pelo cansaço. Por que motivo me impressiona tanto a boca do "Homem da Enxada"? Porque aquela é a minha boca, a tua boca, a nossa boca. Os nossos lábios abertos, numa súplica de água e pão.

Como gostava, caras formigas, de elevar-me de alegria neste dia de cor amarela, o amarelo das coroas de flores entrelaçadas, algures no 1.º de Maio da minha infância, também um dia de celebração do trabalho vivificante da Natureza. Mas hoje deparo-me com o "Homem da Enxada" de Millet e reflito: a nossa visão do trabalho é tudo menos uma visão racional. Pela lei da evolução das sociedades (e não sou eu que o afirmo), as horas de lazer, destinadas à criação livre, constituiriam hoje a maior fatia do nosso tempo. Vejamos: usamos grande parte da nossa vida, uma vida à partida destinada à co-criação do Mundo nos seus infinitos aspectos, em tarefas especializadas. Mais: a troco de moedas que em muito nos são sonegadas. Não, nada disto é  racional. É quase uma atitude supersticiosa perante o trabalho: aceitamos a ilusão de termos sido criados criados para trabalhar, caso seremos punidos com a pobreza e a fome.

Mas basta ver o panorama actual, de pobreza e fome generalizadas, para se ter a noção da dimensão real de tal superstição, como se não bastasse inflamada por afirmações bárbaras, como aquela do "Ai, aguentam, aguentam!". Lembram-se?

 Chegou o momento de citar Agostinho da Silva
«O homem não nasce para trabalhar, nasce para criar, para ser o tal poeta à solta»
O "Homem da Enxada" de Millet não escreve nem lê poesia. Aguenta a jorna agarrado à enxada, aguenta-a até ao final dos tempos, porque assim o desejam os bárbaros, os mesmos que ainda crêem naquela tristemente famosa frase nazi: "o trabalho liberta".

1 comentário:

  1. Entre cada seixadela, escrevo uns versitos. Por isso, eles são habitualmente pequenos.

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