sexta-feira, 24 de abril de 2015

Os cães dos deuses


«Nós, que empreendemos e pensámos / que pensámos e empreendemos / temos que deambular e esgueirar-nos / como leite derramado numa pedra.» W.B.Yates
Nestes tempos difíceis, erguem-se altares às pequenas vitórias. Uns cêntimos na "raspadinha" já nos serve de tema ao jantar. Nestes tempos difíceis, o postal na caixa do correio que substitui o email a pedir-nos tarefas absurdas; o sussurro inesperado ao ouvido e não o grito ditatorial; o café oferecido, ao invés da chávena fria ao balcão; dois minutos ouvir os pássaros, entre um automóvel e outro, tudo isto nos faz gratos pela vida que temos. Patético. Queridas formigas pensadoras: olhemos as "pequenas coisas" que nos deixam felizes enquanto meros bombons caídos de um Olimpo invisível, para diversão dos seus habitantes imortais. Os nossos pretensos donos moram numa montanha inatingível, onde se empanturram de ambrósia, praticam o amor sem convenções, assistem a peças de teatro em sessões contínuas e escutam a música da lira do alvorecer ao entardecer. Este lugar, em que o próprio pensamento de desejo produz a sua satisfação, é-nos interdito.


Nós, os pretensos animais de estimação dos deuses, habituámo-nos, desde sempre, a rasgarmos a carne para voltarmos a cosê-la. Contudo, sofremos e voltamos. Rezamos e voltamos. Erigimos altares onde depositamos oferendas. O nosso pensamento mágico encarrega-se de ampliar a ilusão: a nota de euro encontrada no bolso do velho casaco, os semáforos verdes, o assobio no cimo do andaime, os sorrisos trocado na carruagem do metro, vemos em tudo isto recompensas. Maná do céu. 

Os "bombons" caem ao capricho dos deuses para nos verem entretidos. Entretidos e carentes, numa procissão de suplicantes atravessando a rua escura. As recompensas pelos nossos sacrifícios são, na verdade, simples entretenimentos olímpicos.

Mas os tais deuses, ao dar-nos por dóceis, subservientes e fiéis às suas mentiras de que "tudo está a correr pelo melhor", desconhecem que, entre um bombom e o outro, existe um intervalo chamado paciência. Ora, a paciência tem limites, até os bichos mais bichos um dia esgotam-na. Sim, agradecemos os tostões, o postal dos correios, o café de graça e o chilrear nas árvores. Mas um dia destes quereremos mais. Pois somos mulheres e homens que pensámos e empreendemos, num tempo anterior à contagem dos séculos. Somos merecedores da cornucópia da abundância; foi essa a promessa dada e queremos vê-la cumprida.

Quanto aos deuses, num único dia de revolta, em que o seu fogo lhes será roubado pela nossa inteligência humana, perderão de vez o nosso sofrimento que os alimenta, serão deixados à míngua e por fim encarcerados na sua imortalidade indesejável.

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