terça-feira, 19 de maio de 2015

Amanhãs que não cantam - sibilam

Só espera quem está desesperado. Eu não espero nada. Os amanhãs que cantam, como um dia disse o poeta, colidem frontalmente com as actuais circunstâncias. Portanto, o melhor é deixar de circular por uns tempos. Se calhar, até desaparecer.

Circular  24 horas sobre 24 tornou-se mais que cansativo - uma rotina sem objectivos. "Viver todo os dias cansa", escreveu um dia Pedro Paixão e só agora, no centro do turbilhão das circunstâncias, é que me cai a ficha e percebo a frase, antes julgada  frase fútil,  pura auto-comiseração. Olhem que cansa, cansa e muito.

Os meninos fazem exames. Os meninos batem uns nos outros e à medida que crescem, vão batendo mais e com ainda mais força. Já mulheres e homens, deslocam-se aos estádios de futebol e partem tudo. No dia seguinte, de ressaca, levam os filhos aos exames, os mesmos que também hão-de crescer agredindo-se uns aos outros, vandalizando outros estádios. Mantendo-se o padrão, eis que a selvajaria se instala no mapa genético das famílias. Apesar dos exames, das toneladas de horas de Matemática e Português, das reuniões de Conselhos de Turma por causa do aluno tal e tal (coitadinho, teve uma infância difícil, percebe-se que tenha assasinado a mãe quando ela quis tirar-lhe o telemóvel. Se passa de ano?, claro que passa!), após o corpo de intervenção formado por psicólogos escolares, pedopsiquiatras e professores exaustos ter esgotado todas as estratégias, redigido planos de acompanhamento e papeladas que não lembram ao demo, o córtex pré-frontal das massas vai, democraticamente, regredindo, e o que resta é o instinto do "ataca ou foge", o instinto do lagarto.

Nos amanhãs sem cantigas de amigo, milhares de lagartos e lagartixas irão deslizar sibilinamente pelas ruínas daquilo que foi o Marquês de Pombal. Vão rastejar da Avenida da Liberdade ao Rossio. Também aí, pouco restará, os cafés servirão sandes de lixo aos novos répteis. No Chiado, a escultura de Fernando Pessoa será substituída por um grande lagarto sentado. E onde dantes havia a representação da chávena de café, veremos um modelo miniaturizado de ser humano.

Antes que tal profecia se cumpra, vou comprar o meu bilhete para um lugar mais evoluído da Galáxia, pois conheço bem as lagartixas da minha terra e só de as imaginar crescidas e sentadas em mesas de escola, leva-me a fazer já as malas e enfiar-me no tubo de teletransporte. Quem quiser que venha e traga um amigo também. Mas depressa, a ameaça dos répteis está próxima. Tenham medo, tenham muito medo.

2 comentários:

  1. Nem mais. Gostei muito do artigo Encantadora. Infelizmente estou entre os que fogem. Mas para onde ? Deve de haver um lugar por ai. O mais próximo que conheci foi dentro de mim. Lá em casa não entendem porque quando chego a casa me deito a dormir. Quando não condições para viver, aprendamos com os ursos a hibernar.

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  2. Também quando chego à minha cabana como e vou hibernar durante uma hora...realmente, não há condições. Mas dentro de nós, somos livres. É o que temos e é óptimo!

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